Publicada: 06/07/2020
segunda-feira, 6 de julho de 2020
Fonte: Jornal do Comércio
A estiagem que começou em setembro do ano passado e se estendeu até março de 2020 provocou uma queda de 43,4% na produção de soja do Rio Grande do Sul, segundo a atualização do levantamento da safra 2019/2020 da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), divulgada no dia 9 de junho. Com a colheita de apenas 10,8 milhões de toneladas, o rendimento médio da sojicultura gaúcha caiu de 3.321 quilos por hectare para 1.839 kg/ha, recuando a desempenhos de 40 anos atrás, quando os pioneiros pelejavam para adaptar o grão aos solos ácidos do Norte do Estado - ou vice-versa.
A soja está presente no Brasil desde o fim do século XIX, quando alguns sitiantes e técnicos iniciaram experiências de plantio de sementes trazidas por imigrantes. Um dos primeiros polos de experimentação foi o Instituto Agronômico de Campinas, criado por D. Pedro II em 1887. Outro era Pelotas, cuja escola de Agronomia, desde 1901, distribuía as sementes amareladas entre colonos que usavam os grãos para alimentar porcos. Um século atrás, a soja era pouco mais do que uma curiosidade botânica que passou a interessar a incipientes indústrias de óleo vegetal - de amendoim e algodão, em São Paulo; de amendoim e linhaça, no Rio Grande do Sul. Os governos pareciam não ligar para o feijãozinho dourado. Até que o atacadista gaúcho Frederico Ortmann, ativo na importação/exportação, embarcou uma carga de soja para a Alemanha. Foi em 1938, às vésperas da II Guerra Mundial.
Um dos aspectos mais significativos da explosão da soja foi a intensa migração de agricultores que desde os anos 1940 deixaram o Rio Grande, primeiro para ocupar o Oeste catarinense; na década seguinte, o Sudoeste do Paraná; nos anos 1960, o Sul do Mato Grosso; depois Goiás, Distrito Federal e Mato Grosso até alcançar territórios próximos da linha do Equador, onde a imaginação de alguns técnicos criou o Matopiba, território fictício formado por porções do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia.
Encerrado praticamente na década de 1990, o fenômeno migratório gaúcho não chegou a ser estudado senão superficialmente. Numa cerimônia no Palácio Piratini na primeira metade do seu mandato, o governador José Ivo Sartori (MDB, 2015-2018) comentou as perdas de capitais, tecnologia e capacidade gerencial decorrentes da evasão de milhares de empreendedores rurais. Muitos realizaram o sonho de enriquecer, outros ficaram no meio do caminho e não poucos voltaram.
Nos anos 1960, o Brasil começou a exportar alguns produtos manufaturados como calçados, suco de laranja e têxteis. No meio deles meteu-se o farelo de soja, subproduto da indústria vinda no rastro de primitivas extratoras de óleos vegetais. No começo eram experimentos de curiosos. Nomes como Santa Rosa, Violeta e Merlin ainda são lembrados no Interior como marcas de óleo criadas pelas pioneiras Sorol, Igol, Olvebra e Merlin.
Entre os mais ousados empreendedores pioneiros, destacou-se um grupo de chineses dissidentes da revolução comunista de 1949. Eles conheciam as técnicas de extração de óleo e possuíam contatos com importadores. Progrediram. É fruto deles o atual grupo Ling.
O maior investimento industrial dos anos 1950 foi feito em Esteio pela Samrig, do grupo Bunge y Born, que possuía grandes moinhos de moagem de trigo em cidades portuárias. A Samrig liderou o Instisoja, um organismo privado de fomento que se articulou com a Secretaria da Agricultura, cujos técnicos apostaram firme no feijão-soja. Na edição de 1/4/1955, o Correio Rural (suplemento do Corrio do Povo) publicou artigo do agrônomo oficial Paulo Annes Gonçalves, que vaticinou: "A soja será breve uma grande cultura rio-grandense. Figurará a par com três grandes culturas: milho, arroz e trigo".
Com o passar do tempo, o óleo de soja tomaria o lugar da banha suína na culinária caseira; a margarina dividiria receitas com a manteiga; e o farelo e a torta da leguminosa se tornariam a base da alimentação de aves, porcos e bovinos, dando nova feição à agroindústria de carnes e rações.
A industrialização dos grãos de soja chegou ao final do século XX com uma centena de unidades fabris que foram se instalando nas recém-abertas fronteiras agrícolas. Algumas dessas indústrias usam hoje o óleo de soja para produzir biodiesel, o último dos subprodutos desse vegetal capaz de fornecer centenas de derivados usados em alimentos, cosméticos e medicamentos.
Nos bastidores dessa revolução agroindustrial, prosperou a indústria brasileira de máquinas e implementos rurais, com plantas em Santa Rosa, Horizontina, Passo Fundo, Caxias do Sul, Cruz Alta, Panambi e Canoas, entre outras cidades gaúchas. Na realidade, eram antigas oficinas que, nos melhores casos, evoluíram para linhas de montagem de colhedeiras. A maior delas foi a SLC, de Horizontina, hoje controlada pela John Deere, que possui uma segunda fábrica em Montenegro.
Outros ramos industriais também embarcaram no boom da soja. Um dos mais salientes foi a indústria de implementos rodoviários (carrocerias), cuja capacidade individual de carga triplicou no afã de assegurar às rodovias a liderança no escoamento da produção. Mesmo operando em estradas simples desde as zonas de produção até o porto de Rio Grande, os caminhões graneleiros dominam o transporte de grãos, superando largamente as ferrovias e as hidrovias.
Não se pode contar a história da soja sem reservar pelo menos um capítulo ao cooperativismo. Ele esteve nas origens do processo de expansão da sojicultura no Rio Grande e em outros estados. Se não chegou mais longe, foi por acidentes de percurso. Por exemplo, alguns líderes se descolaram das bases, embarcando na ilusão de que estavam no poder e podiam dar passos maiores do que as próprias pernas. Foi o caso da Fecotrigo-Centralsul, que faliu em 1982 por não poder sustentar operações dolarizadas de exportação de soja e importação de fertilizantes. O colapso da Fecotrigo e de algumas cooperativas manchou a reputação do sistema no Rio Grande do Sul, mas o cooperativismo técnico se manteve de pé em diversos setores - destaque para os de laticínios e crédito.
Na arrancada da sojicultura, nenhuma cooperativa empenhou-se tanto na aliança produtores-governo quanto a Cotrijuí, fundada em 1957. Além de colocar-se na vanguarda do plantio no Rio Grande do Sul e da logística de transporte dos grãos por hidrovia, usando barcaças no percurso Estrela-Rio Grande, essa cooperativa atendeu a pedidos do governo militar para assumir projetos de assentamentos de colonos em áreas de fronteira agrícola de outros estados, onde o único fator de infraestrutura era a terra coberta por alguma vegetação nativa. Em suas mãos desapareceu uma usina de açúcar e álcool implantada em 1974/75 pelo Incra em Altamira, no Km 92 da Rodovia Transamazônica.
A poderosa cooperativa de Ijuí estava tão enfronhada na dinâmica das exportações que promoveu uma inédita excursão de agricultores gaúchos aos Estados Unidos. Desfrutando dos lucros da safra de 1974, mais de 100 produtores, jornalistas e políticos percorreram durante três semanas vários elos da cadeia produtiva da soja em território ianque. Um dos pontos altos foi uma visita ao pregão da bolsa de mercadorias de Chicago, a meca dos grãos.
Dissidências sobre dívidas e projetos arrastaram a Cotrijuí para uma situação de insolvência. Em outubro passado, com dívidas de mais de R$ 2 bilhões, ela teve sua liquidação decretada pela Justiça. Restam-lhe algumas atividades, como uma rede de supermercados; armazéns e um frigorífico estão arrendados, mas apenas um grupo de associados ainda luta pela sua sobrevivência. Jonas Vieira, repórter da Rádio Progresso, disse ao JC que a Cotripal, de Panambi, está de olho para ocupar espaços antes ocupados pela Cotrijuí, responsável, nos anos 1970, pelas operações que deram origem ao chamado superporto de Rio Grande, ponto final do primeiro "corredor de exportação" de soja.
Durante o boom inicial da soja, foi ministro da Agricultura o agrônomo gaúcho Luiz Fernando Cirne Lima, que ficou no cargo por três anos. Antes de sair, em maio de 1973, ele teve tempo para assinar a fundação da Embrapa, fruto da confluência de diversos núcleos de pesquisa agrícola espalhados pelo País. No caso da soja, as unidades mais experientes naquele momento eram as de Pelotas, Passo Fundo e Londrina (PR), onde se fixaria, a partir de 1975, o Centro Nacional de Pesquisa da Soja. Não por acaso, os primeiros líderes da pesquisa da soja foram gaúchos, a começar por Francisco de Jesus Vernetti, um dos pioneiros das pesquisas de melhoramento em Pelotas.
Posteriormente, entrariam em ação outros polos como os de Sete Lagoas (MG), Planaltina (DF) e Goiânia (GO). Havia, ainda, parcerias com universidades como as de Viçosa (MG) e do Rio de Janeiro, além da colaboração de institutos estaduais como o IAC, o Iapar, a Epamig, a Emgopa, a Epagri e a Fepagro. Com o passar do tempo, a Embrapa estendeu ao País inteiro uma rede de experimentos responsável pelo melhoramento de milhares de variedades de sementes adaptadas a todos os biomas, ecossistemas e microclimas.
Desse gigantesco esforço resultou a tropicalização da soja, originária do clima temperado da Ásia. Por isso esse vegetal é considerado um fenômeno, não só no aspecto agronômico, mas por seu potencial como matéria-prima industrial e alimento rico em propriedades nutracêuticas (alimento remédio). Sua expansão geográfica foi tão rápida que os pesquisadores alarmados com o risco de um apagão ambiental precisaram correr para estudar as frutas, as ervas e as raízes dos Cerrados, bioma que cobre 22% do território brasileiro. Uma das pessoas sobreviventes dessa correria é a bióloga Semíramis Pedrosa, baiana de Barreiras que trabalhou por 40 anos na Embrapa de Planaltina e catalogou mais de 200 espécies vegetais nativas: araticum, baru, cagaita, cajus etc., cujos frutos antes ignorados estão na culinária do Brasil Central, ao lado do tradicional pequi.
Em meados dos 1950, visitou a Secretaria da Agricultura do Rio Grande do Sul o agrônomo paulista José Gomes da Silva (1925-1996), pesquisador do Instituto Agronômico de Campinas, que liderava uma campanha pela expansão da soja no estado de São Paulo. Ele queria incluir o RS no esquema triangular de cooperação técnica entre agricultores, pesquisadores e industriais - modelo visto por ele em Iowa, nos Estados Unidos, onde fizera mestrado. Em Porto Alegre, conversou com o secretário da Agricultura, Maneco Vargas. Também formado em Piracicaba (SP), Vargas não lhe deu estribo: achava que os dois estados estavam separados por enorme distância, não apenas geográfica, mas técnica. Melhor andarem cada um por si.
Em alguns aspectos, São Paulo já andava na frente. Caso da correção dos solos dos Cerrados com calcário. Desde 1951, um grupo de técnicos norte-americanos acampara no município de Matão, entre Piracicaba e Araraquara, para executar um projeto de pesquisa de calagem de lavouras de café, cana, cítricos, algodão e soja. Apoiada por cientistas de Campinas e Piracicaba, a empreitada era custeada pelos irmãos Rockefeller, donos da Standard Oil of California, a maior petroleira do mundo, representada no Brasil pela Esso.
No fomento ao plantio paulista, atuavam diversas indústrias lideradas pela Anderson Clayton, também dos Estados Unidos. Com uma defasagem de dois a três anos, o fomento da soja no Rio Grande do Sul era feito pelo Instisoja, liderado pela Samrig, que também atuava em São Paulo como o nome de Sanbra.
O tripé pregado por José Gomes funcionou espetacularmente, tanto que a soja se tornou o carro-chefe do agronegócio brasileiro, mas não alcançou senão parcialmente os resultados esperados por ele na nutrição dos pobres. Já nos anos 1980, o leite de soja era adicionado aos pacotes da merenda escolar, primeiro passo para sua adoção em cestas básicas do Tudo Pelo Social do governo de José Sarney (1985-1990).
Apenas no século XXI, no governo Lula (2003-2010), foi retomada a ideia de subsidiar a alimentação das camadas mais carentes da população. Na gestão do programa Fome Zero, oficialmente transformado no Bolsa-Família, sobressaiu o agrônomo José Graziano Gomes da Silva, filho de José Gomes, o Zé Sojinha. Depois do trabalho executado em Brasília, ele se mudou para Roma, onde cumpriu oito anos como diretor da FAO, o braço da Organização das Nações Unidas para a Agricultura, cujo foco é alimentar os pobres do mundo.